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       O Projeto Sexto Sentido não tem um fundador definido nem uma data que precise o início das atividades. Ganhou vida e espaço a partir de uma ação voluntária entre amigos que tinham, desde o começo, o objetivo de formar  um grupo de paratletas que treinassem e participassem em provas de corridas. O Projeto Sexto Sentido conta com a parceria da Associação Catarinense de Esportes Adaptados (ACESA) e com a Associação Catarinense para Integração do Cego (ACIC). O sexto sentido é uma ação voluntária que viabiliza o esporte como ferramenta de inclusão e afetividade no esporte. Todos os participantes são voluntários e corredores que, por iniciativa própria, guiam atletas cegos e atletas com baixa visão. A corrida é a principal prática esportiva do projeto. A maioria dos paratletas treinam para distâncias maiores, completando meias maratonas (21,1 km), maratonas (42 km) e ultramaratonas (superior a 42 km). Há, também, quem treine para provas mais curtas de cinco ou dez quilômetros, participando de competições em pistas ou pelo prazer de correr.
       Um dos voluntários do projeto é Eduardo Alexandre dos Santos, técnico judiciário e atleta guia de paratletas participantes do projeto.  Ele se tornou guia pelo incentivo de sua mãe, Rosângela Alexandre Laurindo, também atleta guia e voluntária do Sexto Sentido.
       Eduardo decidiu participar ativamente do projeto quando estava tendo problemas de saúde. Ele mudou sua rotina e encontrou no esporte mais qualidade de vida. “Antes de saber o que era corrida, eu já sabia o que era corrida guiada”, afirma Eduardo. Atualmente ele é guia na corrida, natação, montanhismo, remo e surf.

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Correndo no Escuro
Confiança, afeto e entrosamento: a relação entre atletas-guias e atletas cegos ou de baixa visão em Florianópolis.
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Por Diogo Medeiros, Rafaela Coelho e Raisa Gosch
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Qual é a cor que seu cotovelo enxerga?
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       Para pessoas que enxergam, imaginar como seria o mundo sem o sentido da visão pode ser algo complicado e mesmo limitado. Isso porque a ideia da cegueira como um mundo no escuro está mais para uma compreensão feita por pessoas que enxergam do que para uma reprodução fiel da realidade. Diferentemente das pessoas que ficaram cegas no decorrer das suas vidas ou das pessoas de baixa visão, as pessoas que nasceram cegas não enxergam nada, nem mesmo a cor preta. De acordo com o pesquisador Bradford Z. Mahon, imaginar a cor da cegueira é como imaginar a cor que um cotovelo enxergaria. 

       Em geral, nosso cognitivo limitado pode experimentar: imaginar. E vivenciar parcialmente. A formação das cores em nossos olhos se dá pela refração da luz, isto é, quando a luz bate em um objeto, muda de direção e chega até nossos olhos. A cor preta percebida por pessoas que enxergam quando fecham os olhos é uma ausência dessa luz. Isso acontece porque a luz deixa de atravessar nosso maquinário da visão.  A vivência de usar uma venda para ver o mundo com os outros sentidos: olfato, tato, audição e paladar faz parte do processo de iniciação das pessoas que pretendem participar do Projeto Sexto Sentido, em Florianópolis, para ser os olhos de atletas cegos. Entre as modalidades de práticas esportivas que o projeto oferece, estão atletismo, natação, jiu jitsu, futebol e a corrida.

        Os esportes praticados por pessoas cegas ou de baixa visão são praticados com a mesma paixão, intensidade – e velocidade – que os praticados por pessoas que vêem o mundo através dos olhos. A diferença está nas adaptações, nos instrumentos, nas atitudes e nas pessoas. Palavra-chave: pessoas. Pessoas que acordam cedo para correr em Florianópolis e que compartilham entre si o objetivo comum do esporte. Essas pessoas são os atletas-guias e os atletas-guiados.

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Inclusão através do esporte
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       Gilmar Silva Amaral perdeu a visão aos 22 anos de idade. Teve contato com o esporte adaptado cinco anos depois, quando se mudou para Florianópolis, no ano 2000. Hoje, aos 48 anos, ele é atleta guiado e pratica corrida, natação e goalball, que é um futebol de quadra adaptado com bola de guizo e jogadores vendados.
       A prática esportiva não está relacionada apenas aos exercícios físicos diários,  hobby ou passatempo. Para Gilmar é mais que isso. “O  esporte é uma ferramenta de transformação. Através dele eu me sinto de igual para igual na sociedade. O esporte me mostrou que a deficiência não vem antes da pessoa”. Como atleta há mais de dez anos, ele treina e participa de competições, principalmente na corrida guiada. Isso só foi possível porque conheceu o Projeto Sexto Sentido, em Florianópolis.

Políticas Públicas
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       O esporte pode proporcionar maior socialização e melhora nas condições de saúde e de vida de pessoas com deficiência, por isso o fomento à criação de políticas públicas é cada vez mais necessário. De acordo com o relatório mundial sobre deficiência, elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Banco Mundial, mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo convivem com alguma forma de deficiência. No Brasil, 6,2% da população apresenta algum tipo de deficiência: intelectual, física, auditiva e visual,  segundo o relatório  divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2013.


       Números expressivos para um grupo de pessoas que durante muito tempo foram marginalizadas pela sociedade. Com o passar do tempo, para garantirem seus direitos à dignidade e às liberdades fundamentais perante a lei, foi criada, pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Convenção  sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CPCD). No Brasil a Convenção foi aprovada por Decreto no ano de 2008. Além das as leis que garantem os direitos das pessoas com deficiência em todas as instâncias sociais, é importante ressaltar a  LEI 10.098, que estabelece critérios básicos para a acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida e a LEI Nº 11.126 que dispõe sobre o direito da pessoa com deficiência visual  de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhada de cão-guia.

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       Em 2015, no Brasil, foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, destinada a “assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.” Consta no Estatuto da Pessoa com Deficiência que a pessoa tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, além disso, o poder público deve adotar soluções destinadas à eliminação, à redução ou à superação de barreiras para a aplicação das normas de  acessibilidade. Como também consta que é  dever do poder público promover a participação da pessoa com deficiência em atividades artísticas, intelectuais, culturais, esportivas e recreativas, incentivando a instrução, o treinamento e recursos adequados em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, além de assegurar a acessibilidade nos locais de eventos e nos serviços prestados por pessoa ou entidade envolvida na organização das atividades.

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       Um dos maiores incentivos aos atletas com algum tipo de deficiência são os Jogos Paralímpicos, evento de esporte de alto rendimento e que requer dedicação absoluta dos atletas. De 1960 para 2016, a competição cresceu muito. Nos Jogos Rio 2016, houve a participação de mais de 4 mil atletas, de 176 países e, no entanto, o esporte paralímpico é ainda pouco valorizado, visto o exemplo de que o incentivo ao esporte paralímpico ainda é menor do que o destinado ao esporte olímpico.

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            A lei Agnelo/Piva determinou o repasse de 2% do lucro de loterias aos comitês que cuidam dos recursos a atletas olímpicos e paralímpicos. Quando feita a divisão, 85% do dinheiro foi para o Comitê Olímpico Brasileiro e apenas  15%  para o Comitê Paralímpico Brasileiro. Mesmo com pouco incentivo e várias dificuldades, o Brasil é uma potência paralímpica. Segundo a Revista Brasileira de Ciências do Esporte, as dificuldades para treinar como os problemas com as calçadas e a falta de instalações em espaços apropriados são as duas principais barreiras para a prática de atividade física por pessoas com deficiência visual. A existência de investimentos por parte do poder público para a melhoria de calçadas adaptadas, espaços apropriados para o treino de atletas com deficiência são cada vez mais necessários para que a realidade de diversos paratletas brasileiros possa melhorar.

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       Além do incentivo do poder público, há também instituições que colaboram para a participação e a  inclusão do deficiente visual  na sociedade e no esporte, como a Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais (CBDV), entidade criada com o objetivo de gerir modalidades paralímpicas e não paraolímpicas, representando nacional e internacionalmente o esporte para cegos e deficientes visuais, promovendo a qualificação profissional, a preparação das seleções para o alto rendimento e a inclusão social de seus praticantes.

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       Em Florianópolis, existe a  Associação Catarinense para Integração do Cego (ACIC), instituição não governamental sem fins lucrativos que atende pessoas com deficiência visual (pessoas cegas ou com baixa visão) nas áreas de habilitação, reabilitação, profissionalização, cultura e esporte. Através do apoio e das atividades oferecidas pela ACIC, os atletas e participantes do projeto têm a oportunidade de conhecer e praticar diversas atividades adaptadas como corrida, artes marciais, remo, ciclismo entre outros. Conforme o levantamento de dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, Florianópolis é a segunda cidade com o maior número de deficientes visuais em Santa Catarina, atrás apenas de Joinville.

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       A capital catarinense possui 9.198 pessoas com os três níveis de cegueira. Mesmo com essa quantidade elevada de pessoas com deficiências, as ruas e as calçadas não são pensadas para elas. Todos os atletas entrevistados treinam corrida diariamente na Avenida Beira-Mar, onde se encontram uma série de problemas como falta de pista apropriada apenas para corredores, patinetes e bicicletas parados no meio do caminho. A atitude das pessoas que enxergam também é uma barreira para a prática apropriada e segura da corrida adaptada. São chamadas de barreiras atitudinais e vão desde a desatenção das pessoas ao preconceito e descaso com o atleta com deficiência.

Atletas Guias
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       Diferente do filho, Rosângela Alexandre se tornou atleta guia pelo acaso. Seu primeiro contato com atletas guiados foi em 2002, próximo ao seu local de trabalho. Quando conversava com esses atletas descobriu que um deles Valdemar, tinha vontade de participar da corrida rústica, um tipo de corrida caracterizado pela variação de  solo, com percursos de trilha em meio à mata, asfalto, areia, mas não tinha um guia para acompanhá-lo. Rosângela decidiu que iria treinar para  acompanhar Valdemar.


       Mesmo que à época nunca tenha participado de nenhuma competição de corrida, naquele momento ela se tornou uma atleta guia. Atividade que exerce até hoje. “Eu nunca cheguei sozinha ao final de uma corrida. Sempre foi com alguém ao meu lado, desde do início”. Rosângela e Eduardo são mãe e filho que compartilham juntos a paixão pelo esporte e também pelo ato de guiar. Ambos são voluntários no Projeto Sexto Sentido.

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       Rosângela, além de guiar na corrida também guia no ciclismo, natação e remo, já foi guia de diferentes atletas e agora é, principalmente, guia de Marco Antônio Bastos Laurindo, seu marido. Ele começou a praticar corrida em 2014 e não parou mais “Olha, embora eu corra sendo guiado, ‘amarrado com uma pessoa’, eu me sinto livre”.

      Assim como Rosângela e Eduardo, qualquer pessoa que tiver vontade pode se tornar um guia. Não há nenhum tipo de pagamento ou pré-requisito. Apenas um treinamento, entrevista. E o desejo.

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Arte por Diogo Medeiros e Rafaela Coelho.

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